Ele riu muito, sem parar, como naqueles momentos de embriaguez em que se ri à toa porque parece ser a única coisa possível de se fazer. Embriaguez não necessariamente causada por uma bebida, mas por alguma ocasião que expõe o corpo ou a mente a um extremo e cuja solução se dá quando o cansaço sucumbe ao riso frouxo...
Era sim uma tarde extrema de domingo; fazia um calor daqueles! Mesmo em minha casa, tão cotidianamente escura e fria, parecia impossível permanecer imune à temperatura do dia que mais parecia um castigo. Não só o ventilador, também o desconforto acompanhava-me onde quer que estivesse, fosse no quarto escuro e fechado contando que o confinamento formasse uma barreira física ao bafo quente de fora, fosse na varanda, sentada sobre o piso frio de cerâmica, esperançosa de que surgisse ao menos uma brisa, a qual me faria sorrir brevemente de gratidão.
Eram mais ou menos quatro horas da tarde quando não aguentei e saí em busca de um remédio para as minhas ardências: um picolé! Fui até a farmácia mais próxima, comprei um picolé e o chupei ali mesmo, bem devagar. Em seguida, comprei outro picolé na tentativa de estender a sensação de frescor até o retorno à casa. Bobagem, pois sabia desde o início se tratar de uma humilde saída, de um breve consolo por não poder, nem me lembro por quê, ir à praia dar um mergulho, como fez o menino naquela tarde de fogo do cão.
Na verdade, menino nem tão menino assim: Aos quatorze anos já tinha quatro namoradas no histórico. Era inteligente e até bonito para a idade, apesar do aparelho nos dentes. Seus olhos estavam sempre levemente marejados, mas acompanhavam um sorriso de criança que só desaparecia às vezes, quando ele, parado, sentado em sua carteira, olhava fixamente para o nada, e seus olhos, nesta hora ainda mais brilhantes, atravessavam as paredes das salas e os corredores, desciam pelas escadas e alcançavam as ruas, fluindo pelo asfalto em seu skate tipo long board. Ou pelo menos foi o que eu supus algumas vezes.
Falando no skate, devo dizer que naquela tarde quente, dois amigos da escola passaram na casa do menino chamando-o para andar de long na praia. Sua mãe não o deixou ir. Bom, não deixou que ele fosse até a praia. Podia ficar por ali, andando pelo bairro e, convencido pelo calor mais do que pelos amigos, foram eles, à revelia da mãe, cumprir o plano original.
Enquanto atravessava os bairros até a orla e mesmo durante as andanças pelo calçadão, o menino usava um boné virado para trás de dentro do qual escorria o suor que molhava sua camisa. O boné protegia apenas metade da testa e deixou uma estranha e risível marca de bronzeado no menino.
Depois de tanto deslizarem naquele movimento ondulatório, no mesmo instante em que eu saíra de casa para comprar meu picolé, resolveram descansar. Atiraram-se na areia da praia, bem próximos ao mar. Era, provavelmente, um dos pontos mais frescos da cidade. O lugar também era muito bonito; bem na direção dos meninos havia uma ilhota ao fundo. O verde da ilha se destacava no horizonte azul que, de tão azul o céu naquele dia, fazia com que o mar e o céu se fundissem. Na verdade, a linha do horizonte era feita apenas pelos navios distantes. Será que foi isso que o fez rir? Ele riu muito, sem parar, como naqueles momentos de embriaguez em que se ri à toa porque parece ser a única coisa possível de se fazer. Embriaguez não necessariamente causada por uma bebida, mas por alguma ocasião que expõe o corpo ou a mente a um extremo e cuja solução se dá apenas quando o cansaço sucumbe ao riso frouxo. Ou, neste caso, sucumbiu também a um irresistível mergulho no mar.
Que delícia seria estar eu lá, ao invés de aqui, chupando este efêmero picolé. Imagino o prazer do menino no mar, com aquele frescor se espalhando e gelando todo o seu corpo.
Ele riu de tudo, certo de que cada coisa estava em seu devido lugar. E era aquele o seu lugar? Batendo braços e pernas, meio franzino e desajeitado, com a coragem de um passarinho que ainda filhotinho pula da árvore para aprender a voar? Será que em algum momento se lembrou das ordens da mãe? Ou será que a água resfriou qualquer lembrança de suas obrigações de menino? Talvez não. Só sei que ele sempre se arriscava indo para as provas bimestrais sem ao menos saber que matérias cairiam nelas. Não porque fosse mal aluno, ao contrário, mas porque, além de otimista e destemido, acreditava muito em si mesmo. Todos acreditavam. Pra falar a verdade, o vento sempre soprava a seu favor e, assim, sua boa sorte era sempre esperada.
No que pensava o menino sortudo eu não sei. Sei que, dentro do mar, o tempo para por vontade. É isto o que acontece: quem o adentra, entregando-se a submersão, na verdade, se recusa a pensar no que deixou lá fora, nega seu passado. Quer nascer de novo, convertido. Por isso se sai dele renovado, purificado pelo batismo.
Os dois amigos do menino, apenas após alguns minutos ali - já que dentro da água o tempo parece ser incalculável -, resolveram voltar para a areia. Apesar do menino ter ameaçado seguir os amigos, logo hesitou e permaneceu na água. O tempo para no mar e corre na areia. Ele sabia.
E o menino pisou no nada. No nada profundo...
Era um praia linda, mas não pura obra da natureza; sofrera tantas interferências ao longo dos anos que sua morfodinâmica, agora alterada, tornara-se imprevisível. O que se sabe é que apresenta, com frequência, muitos bancos de areia, os quais formam buracos enormes no mar. Pode-se estar, por exemplo, com a água no umbigo e, à distância de um passo, cair num desses buracos com metros e metros de profundidade.
Desesperado, gritava por socorro. Os amigos se prontificaram a ajudá-lo, já que estava perto, praticamente na beira. Estendiam os braços tentando segurá-lo, apesar de saberem que não eram bons nadadores. E havia o medo de também caírem no buraco, afinal, os amigos do menino também eram meninos.
Imediatamente resolveram voltar para a areia e pedir ajuda. Embora fizesse muito calor, a praia estava vazia e creio que foi a braveza do mar ao entardecer que espantou seus banhistas. Correram para chamar um salva-vida e realmente havia um pela orla, mas este estava longe, longe.
O tempo corre na areia. Correram muito até alcançar o salva-vida e correram de volta, os três, juntos, até alcançarem o amigo. O tempo para no mar. O corpo do menino, agora virado para baixo, boiava.
Enquanto eu terminava meu picolé que derretia rapidamente, bem devagar, trazido pela marola como um pacote frágil, o menino foi depositado na areia.
(30/04/2015)